RESUMO: Quais as possíveis conexões entre o Registro Civil de Pessoas Naturais e o Princípio do Desenvolvimento Sustentável? Através do método dedutivo, baseando-se em análises doutrinárias e normativas, o presente artigo buscará responder à pergunta problema ao longo de três tópicos. Inicialmente, pretende-se expor a relevância da atividade desempenhada pelos cartórios de Registro Civil na vida das instituições e das pessoas. Em seguida, será trabalhada a relevância do trabalho conduzido por estas serventias para a concretização dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável propostos pela Agenda 2030 da ONU. Por fim, será apresentada uma reflexão acerca das perspectivas de sustentabilidade da atividade registral no Brasil, bem como do risco iminente que as propostas de reforma do Código Civil proporcionam para a viabilidade deste serviço tão essencial.
PALAVRAS CHAVE: Registro Civil de Pessoas Naturais; Desenvolvimento Sustentável; Sustentabilidade econômica.
INTRODUÇÃO
Estudar os serviços extrajudiciais e, mais especificamente, o Registro Civil de Pessoas Naturais requer a compreensão do importante papel desta instituição na vida dos cidadãos brasileiros. Sob o ponto de vista das pessoas naturais, sua função primordial é conferir condições essenciais para garantir o exercício da cidadania. O Registro Civil é o guardião, por tempo indeterminado e de forma segura, de todos os atos da vida civil e todo o status civil adquirido pelo cidadão no decorrer de sua vida.
A história de uma pessoa, do nascimento até a sua morte, bem como todos os capítulos que a entremeia, está retratada de forma autêntica nestas serventias. É através de atos ali praticados que se prova o nome, o sexo, o gênero, a idade, a filiação, a naturalidade e demais dados de qualificação de uma pessoa, bem como sua capacidade para a prática de atos civis. Esta é uma das razões pelas quais o Registro Civil pode ser reconhecido como a especialidade mais importante das serventias extrajudiciais.
O Registro Civil não apenas promove a cidadania e a inclusão social, mas também atua como poderosa ferramenta de fomento econômico, contribuindo para a construção de uma economia mais robusta e sustentável. Ela produz dados estatísticos que direcionam as políticas públicas em várias áreas. Sua importância tem crescido cada vez mais. Novas atribuições têm sido delegadas pelo Estado à esta especialidade, introduzindo em suas atividades a resolução de problemáticas condizentes com os atuais anseios sociais, econômicos e políticos.
Para além de contribuir para a boa governança, sua atividade também é um pilar para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos pela ONU. No intuito de explorar esta questão, o presente artigo pretende abordar a relação entre os cartórios de Registro Civil e o Desenvolvimento Sustentável, destacando a importância de um sistema registral robusto, eficiente e economicamente viável para a construção de sociedades mais justas, inclusivas e resilientes.
Através do método dedutivo, baseando-se em análises doutrinárias e normativas, o presente artigo buscará desenvolver a temática ao longo de três tópicos. Inicialmente, pretende-se expor a relevância da atividade desempenhada pelos cartórios de Registro Civil na vida das instituições e das pessoas. Em seguida, será trabalhada a relevância do trabalho conduzido por estas serventias para a concretização dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável propostos pela Agenda 2030 da ONU. Por fim, será apresentada uma reflexão acerca das perspectivas de sustentabilidade da atividade registral no Brasil, bem como do risco iminente que as propostas de reforma do Código Civil proporcionam para a viabilidade deste serviço tão essencial.
1. A RELEVÂNCIA DO REGISTRO CIVIL DE PESSOAS NATURAIS EM ÂMBITO NACIONAL
O Brasil possui 7.488 serventias de Registro Civil de Pessoas Naturais distribuídas entre os 5.570 municípios. Todos estes cartórios estão engajados a produzir informações registrais que garantem acesso aos direitos básicos para o exercício da cidadania para 202.080.756 pessoas, número que representa a população nacional constatada no Censo de 20221. Esta grande quantidade de serventias se deve à condição conhecida como capilaridade do Registro Civil. Nos termos da Lei Federal n. 8.935/1994, art. 44, §§2º e 3º, em cada sede municipal haverá no mínimo um registrador civil. Isso significa que, em quantidade, esta é a instituição mais próxima da população. Isso implica em afirmar que muitas localidades não dispõem de delegacia, agência dos correios, lotéricas mas dispõem de uma serventia registral.
Para além da compreensão da capilaridade, é possível notar a relevância social da atividade prestada pelo Registro Civil, mediante a análise de seu horário especial de funcionamento. Enquanto os serviços extrajudiciais, em geral, são prestados de segunda à sexta-feira, o Registro Civil funciona, também, aos sábados, domingos e feriados pelo sistema de plantão, conforme dispõe o art. 4°, §1º, da Lei n. 8.935/19942. O funcionamento ininterrupto denota que se se trata de um serviço de caráter essencial à tutela de direitos essenciais à população.
O reconhecimento de sua relevância vem gerando uma gradativa ampliação dos atos e serviços que podem ser praticados pelo RCPN em benefício da sociedade. O fato fica nítido ao se analisar os desdobramentos decorrentes publicação da Lei n. 13.484/2017. Seu texto concedeu aos Registros Civis o título de Ofícios da Cidadania. A norma autorizou esta especialidade a prestar novos serviços, visando promover a melhoria dos serviços existentes e a efetivação de direitos à população brasileira pela fia extrajudicial. Em complemento à Lei, o CNJ publicou o Provimento n. 66/2018, que dispôs sobre a prestação de serviços pelos Ofícios da Cidadania mediante convênio, credenciamento e matrícula com órgãos e entidades governamentais e privadas. O intuito foi o de promover um acesso mais célere à documentos que, tradicionalmente, são de difícil obtenção para muitos brasileiros.
Ao refletir acerca da importância do Registro Civil de Pessoas Naturais para o Poder Judiciário, nota-se que esta especialidade abriga inúmeros exemplos de medidas e procedimentos que contribuem para a extrajudicialização, a desjudicialização e a redução da carga processual acumulada nos tribunais. Uma das grandes conquistas na seara do direito das famílias se deu graças às informações contidas nos bancos de dados destas serventias. Ao se constatar pelo Censo Escolar de 2009 o número de alunos que não possuíam em sus registros o nome do pai, o CNJ instituiu o programa Pai Presente junto aos tribunais de justiça estaduais, através da edição do Provimento n. 12/2010. Também neste campo encontra-se a possibilidade de reconhecimento da filiação sócio afetiva diretamente em cartório, para pessoas acima de 12 anos, inicialmente regulamentado pelos Provimentos n. 63/2017 e 83/2019 do CNJ. Sua materialização gera reflexos no cotidiano das famílias, alterando direitos de personalidade, de família, sucessórios e patrimoniais. No âmbito dos direitos de personalidade tem-se a adequação do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero diretamente no cartório. A medida, inicialmente regulamentada pelo Provimento n. 73/2018, proporciona uma existência digna para as pessoas transgênero ao passo em que adequa a documentação registral à autopercepção e valoriza a manifestação de vontade livre e consentida, como único requisito para tanto3.
As atividades desempenhadas pelo Registro Civil de Pessoas Naturais também são relevantes para o Poder Executivo. Totalmente comprometido com a autenticidade, a segurança, a publicidade e a eficácia de relevantes atos da órbita civil, estes cartórios são fontes confiáveis da qual se utiliza o Poder Público para obter informações que direcionem as políticas públicas. Os registradores civis detêm a obrigação de alimentar diversos outros sistemas informacionais de órgãos públicos, tais como: o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS); o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); o Sistema de Informação de Direito Políticos e Óbitos – INFODIP, vinculado à Justiça Eleitoral; e o Sistema Nacional de Informações de Registro Civil – SIRC quanto aos dados de nascimento, casamento, óbito e natimorto registrados. Isso faz com que o Registro Civil seja uma das principais fontes de referência estatística. Por sua vez o Estado, com base nesses dados, adquire subsídios para definir medidas administrativas, orientar políticas públicas e fomentar diretrizes para a política jurídica nacional4.
Por fim, cumpre ainda refletir acerca das conexões com o Poder Legislativo. A análise aqui é mais generalizada. A regulamentação da atividade dos cartórios como um todo é feita através de leis em sentido formal. Assim, tem-se a Lei dos Cartórios (Lei n. 8.935/1994), dos Registros Públicos (Lei n. 6.015/1973) e do protesto de títulos (Lei n. 9.492/1997). Outros diplomas legislativos servem como norte da atividade, tal como o Códigos Civil e o Código de Processo Civil. Nestes casos, os registradores civis são executores e também fiscais da observância do principal produto do Poder Legislativo: a atividade legiferante5.
Para além dos entes políticos dos três poderes, a atividade do Registro Civil de Pessoas Naturais contribui para a estabilidade das instituições e a segurança jurídica em todos os âmbitos, auxiliando entidades públicas e privadas, bem como a população em geral. Sob o ponto de vista da pessoa, esta especialidade atua na tutela e na promoção da dignidade da pessoa humana mediante atos de registro que documentam toda a sua vida civil, desde o nascimento até a sua morte. É por meio desta documentação, que a pessoa natural tem acesso aos seus direitos civis e políticos de forma plena, além de ser reconhecida pelo Estado como indivíduo único, dotado de direitos sociais próprios, com vistas a tutelar a sua igualdade de forma material. O Registro Civil constitui, deste modo, um pilar de sustentação da cidadania6.
O trabalho dos registradores civil promove, também, o reconhecimento do indivíduo perante a coletividade social, possibilitando a segurança jurídica de todos os atos a serem realizados pela pessoa no transcorrer da sua vida. Não se trata, pois, de um mero instrumento de identificação e controle estatal (como outrora já foi), mas sim de uma forma de perceber o indivíduo enquanto ser singular e tutelar seus direitos no seio social.
Sua importância não se exaure no âmbito nacional. Estas serventias são indispensáveis para que o estado brasileiro possa cumprir os compromissos de Direito Internacional assumidos perante instituições internacionais. Um grande exemplo disso é a correlação existente entre a atividade do Registro Civil e o Desenvolvimento Sustentável.
2. OS CARTÓRIOS DE REGISTRO CIVIL DE PESSOAS NATURAIS COMO ESPAÇOS DE CONCRETIZAÇÃO DE OBJETIVOS DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
O Desenvolvimento Sustentável é princípio de Direito Econômico de extrema importância para os estudos de Direito Ambiental Internacional. Seu objetivo principal é manter o ponto de equilíbrio entre bem-estar social, preservação ambiental e progresso econômico, sem prejudicar o acesso das futuras gerações aos recursos essenciais para se viver com dignidade. Abrange ainda questões pertinentes à coibição de agressões ao meio ambiente e à erradicação da pobreza no mundo. Não obstante a incorporação de seu conceito nas Constituições de grande parte dos Estados, é importante ressaltar que isso pouco significa se não vier acompanhado da incorporação de medidas garantidoras de sua aplicação.
Esta forma de desenvolvimento, consubstanciado como aquela que corresponde às necessidades do presente sem comprometer as possibilidades das gerações futuras de satisfazer suas próprias necessidades, foi consagrado no texto do Relatório Brundtland (ONU, 1987). A partir de então passou a ser uma meta que deve ser buscada por toda comunidade internacional em busca da proteção do meio ambiente enquanto Direito Humano.
Tempos depois, a Declaração do Rio (ONU, 1992) fez referência ao Desenvolvimento Sustentável em cinco de seus Princípios (nº 3, 4, 8, 20 e 21). A partir deles, buscou-se implementar o desenvolvimento de modo a permitir que sejam atendidas as necessidades da geração presente sem comprometer as das gerações futuras. A orientação emanada foi no sentido de que a proteção ambiental deva fazer parte do processo de desenvolvimento e, portanto, não pode ser considerada isolada deste7.
Acontecimentos posteriores, como a Rio+5 (ONU, 1997), a Conferência de Habitat II, em Istambul (ONU, 2000), a Conferência de Johanesburgo (ONU, 2002) e os Objetivos do Milênio vieram a reforçar a necessidade de se implantar projetos, em nível local e global, que contemplem o Desenvolvimento Sustentável. É possível e extremamente necessário que continue havendo o desenvolvimento e o progresso da humanidade, desde que ocorram de forma equilibrada, mediante a gestão racional dos recursos naturais disponíveis e a utilização das modernas técnicas de gerenciamento8.
Nessa perspectiva, em 2015, os representantes dos 193 Estados-membros da ONU, durante a Cúpula do Desenvolvimento Sustentável, ao tempo em que reconheceram a importância da implementação de ações para a erradicação da pobreza em todas as suas formas e dimensões, sem olvidar do desenvolvimento econômico e da proteção ambiental, adotaram o documento intitulado “Transformando o Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”9.
Em 2018, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Agenda de Direitos Humanos com 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, os ODS, a serem adotados pelos 193 países-membro, incluindo o Brasil. Segundo referido documento, a Agenda é um plano de ação para as pessoas, o planeta e a prosperidade. Os objetivos são integrados e indivisíveis, e mesclam, de forma equilibrada, as três dimensões do desenvolvimento sustentável: a econômica, a social e a ambiental. As metas foram definidas por uma junção dos oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio – agenda do período 2000-2015 – com a Agenda 2030 definida para os anos de 2016 a 203010 ;
O principal foco da Agenda 2030, que norteia as ações a serem tomadas nas áreas sociais, ambientais e econômicas dos países, é a erradicação da pobreza no mundo. No Brasil, o cumprimento dos ODS pelo Poder Judiciário é conduzido pela Comissão Permanente de Acompanhamento dos ODS e da Agenda 2030 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), integrada por 18 entidades brasileiras, incluindo a Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg/BR) e a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil).
O ODS 16 requer uma maior atuação da classe extrajudicial por tratar da “Paz, Justiça e Instituições Eficazes”. Os cartórios de Registro Civil concentram importantes missões para promover a redução da desigualdade social e atender aos objetivos da Agenda 2030. A eles é direcionada Meta 16.9, assim descrita:
Meta 16.9
Nações Unidas
Até 2030, fornecer identidade legal para todos, incluindo o registro de nascimento.
Brasil
Até 2030, fornecer identidade civil para todos, incluindo o registro de nascimento, em especial para os povos ciganos, as comunidades quilombolas, os povos indígenas, os povos e comunidades tradicionais de matriz africana e de terreiros, as populações ribeirinhas e extrativistas, além de grupos populacionais como mulheres trabalhadoras rurais, a população em situação de rua, a população em situação de privação de liberdade e a população LGBT+.
Indicadores
16.9.1 - Proporção de crianças com menos de 5 anos cujos nascimentos foram registrados por uma autoridade civil, por idade11
Esta meta determina o fornecimento de identidade legal para todos, incluindo o registro do nascimento. Para alcançá-la, é possível fazer uso de diversas medidas, tais como o Compromisso Nacional pela Erradicação do Sub-registro Civil de Nascimento e Ampliação do Acesso à Documentação Básica. Desde então, muitas ações foram regulamentadas para que os cartórios de Registro Civil cumprissem com esta missão.
Uma das ações mais recentes e eficientes se deu através do Provimento n. 140/2023 do CNJ que viabilizou um movimento nacional direcionado a pessoas em situação de vulnerabilidade. Entre os dias 8 e 12 de maio de 2023, ocorreu a primeira edição da Semana Nacional de Registro Civil do Poder Judiciário – Registre-se . O programa teve o objetivo de mobilizar a Justiça estadual e a federal para erradicar o sub-registro civil de nascimento no país e ampliar o acesso à documentação civil básica para todos os brasileiros, especialmente para a população socialmente vulnerável. Com o sucesso da primeira edição, o a ação foi repetida em 202412.
Além disso, em sintonia com a ODS 16.9, a Lei n. 6.015/1963 (Lei de Registros Públicos) foi recentemente alterada pela Lei n. 14.382, de 27 de junho de 2022. Dentre os vários aspectos que receberam atualizações, a tutela jurídica do nome merece destaque. A nova norma ampliou as hipóteses legais de alteração de nome e sobrenome, acolhendo para dentro da seara legal algumas situações que, até então, eram tuteladas somente por Provimentos do CNJ. Também deslocou a competência da maioria das situações para os cartórios de Registro Civil, dispensando procedimento judicial13.
A análise conjunta destas metas denota que o objetivo é eliminar (ou pelo menos reduzir) a quantidade de indivíduos marginalizados. Viabilizar a cidadanização, retirando pessoas da marginalização social e jurídica é uma tarefa importantíssima para a consecução do Desenvolvimento Sustentável. Para atingir as metas propostas, o Brasil conta com o trabalho árduo e comprometido de milhares de registradores civis. De tudo o que foi exposto até aqui, é possível afirmar que esta especialidade registral representa muito mais do que aquilo que a lei lhe manda ser. Ela viabiliza o contato direto do cidadão com seus direitos mais básicos, além de promover a concretização da cidadania e o acesso à justiça. Suas conexões com os demais seguimentos públicos e com a sociedade evidenciam, ainda mais, a essencialidade da atividade.
3. O DESAFIO DA SUSTENTABILIDADE DOS CARTÓRIOS DE REGISTRO CIVIL DE PESSOAS NATURAIS
Embora o Registro Civil seja um alicerce essencial para o Desenvolvimento Sustentável, atualmente esta atividade enfrenta, no Brasil, desafios que criam um grande risco de se tornar insustentável para quem a exerce. Muitos destes cartórios, especialmente em áreas remotas, operam com recursos limitados e infraestrutura inadequada. A falta de investimento em tecnologia, capacitação e manutenção pode comprometer a eficácia e a eficiência dos serviços, tornando-os economicamente inviáveis. Para agravar esta situação, a sustentabilidade econômica da atividade registral tem sido alvo de propostas legislativas arriscadas. A exemplo disso, tem-se as recentes propostas de reforma do Código Civil que podem gerar uma redução drástica aos escassos recursos de sustento desta atividade.
No que tange às políticas públicas relacionada aos cartórios, é certo que o Registro Civil é o palco de uma das mais importantes. Trata-se do acesso à cidadania promovida pela gratuidade de diversos serviços14. Este benefício tem o escopo de assegurar a fruição de direitos fundamentais, independentemente de condição econômica. O exemplo mais clássico de gratuidade encontra-se no art. 45 da Lei Federal n. 8.935/1994 que assegura a todos o acesso ao registro civil de nascimento e de óbito, bem como a primeira certidão respectiva. Além disso, aos “reconhecidamente pobres” garante a gratuidade para quaisquer certidões de nascimento e óbito, e não apenas a primeira via. Os atos gratuitos ainda se estendem por diversas outras fontes normativas, tal como a gratuidade para o registro da adoção prevista no artigo 141, § 2.º, do ECA.
Todavia, todos os direitos têm custos e a gratuidade não pode se dar sem nenhuma forma de custeio para a realização dos serviços15. A forma encontrada de custeio de tais atividades reside nos repasses financiados pelos Fundos de Apoio ao Registro Civil de Pessoas Naturais (FUNARPEN), mantidos pelos valores recolhidos por outros cartórios cuja atividade não costuma ser gratuita. O mecanismo tem uma finalidade redistributiva, à medida que o custeio de alguns serviços extrajudiciais serve para o financiamento de outros serviços, indispensáveis, aos cidadãos vulneráveis, numa dinâmica que não onera o Poder Público.
Neste ponto, cumpre assinalar que as propostas de reforma do Código Civil tem gerado grande insegurança para os registradores civis. Isso porque, atualmente, a principal fonte de renda destas serventias se dá pela emissão de segunda via de certidões, das habilitações de casamento civil e do ressarcimento de atos gratuitos. Ocorre que o eventual ressarcimento dos atos gratuitos, proveniente de fundo sustentado por todas as especialidades de cartórios, tem valor variável e nem sempre ressarce integralmente o custo do ato. Caso aprovada a alteração no Código Civil, instituindo-se gratuidade integral para o casamento civil e dispensando a apresentação de certidões, será extinta a principal fonte financeira que sustenta os Ofícios da Cidadania, inviabilizando a atividade16.
Desta maneira constata-se o curioso paradoxo vivenciado atualmente pelos cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais: sua atividade é um componente essencial para a promoção do desenvolvimento sustentável, todavia a sua própria sustentabilidade e viabilidade econômica encontram-se ameaçadas. Certamente não é este o caminho que o Brasil deseja trilhar. Cabe ao país, pelo contrário, fortalecer o sistema de Registro Civil, não apenas para melhorar a governança interna, mas também para se alinhar com padrões e metas internacionais. Garantir que esses serviços sejam economicamente viáveis, sem sacrificar a qualidade e a acessibilidade, é crucial para a sustentabilidade a longo prazo. Um Registro Civil robusto e sustentável assegura uma existência digna aos registradores civis e garante que todos os indivíduos sejam reconhecidos e incluídos no desenvolvimento socioeconômico de forma justa e equitativa.
CONCLUSÃO
Diante desta contextualização, é possível perceber a grandiosa relevância que os cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais têm na vida dos indivíduos, da sociedade e da economia. Sem o trabalho comprometido de um registro civil, milhares de pessoas permaneceriam invisíveis aos olhos do Estado, excluídas de oportunidades fundamentais e da proteção social. Estas serventias também produzem dados estatísticos essenciais para o planejamento e a implementação de políticas públicas eficazes. Esses dados permitem que os governos distribuam recursos de maneira mais equitativa, identifiquem áreas com necessidades específicas e monitorem o progresso em direção aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Embora a atividade registral seja essencial para a concretização das premissas do Desenvolvimento Sustentável, nota-se que sua própria sustentabilidade enfrenta desafios significativos. Não bastasse as corriqueiras dificuldades econômicas para manter uma infraestrutura tecnológica moderna capaz de atender, com eficiência, às exigências legais e às necessidades da população, atualmente, as propostas de reforma do Código Civil sujeitam os registradores civis ao risco de perder uma significativa fonte de renda. Superar esses desafios exige compreender a realidade dos cartórios de Registro Civil, bem como a colaboração entre os diversos setores sociais e econômicos. Apenas com um sistema de Registro Civil robusto e sustentável, será possível garantir que todos os cidadãos continuem sendo reconhecidos, incluídos e capacitados para contribuir com a sociedade e com a economia.
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4 BULZICO, Bettina Augusta Amorim. O registro civil de pessoas naturais e a concretização dos direitos registrais a um nome e a autodeterminação da identidade de gênero de pessoas transgênero. Tese (Doutorado em Direitos Sociais) UFPR – Universidade Federal do Paraná. Curitiba: 2023, p. 31.
5 BULZICO, Bettina Augusta Amorim. O registro civil de pessoas naturais e a concretização dos direitos registrais a um nome e a autodeterminação da identidade de gênero de pessoas transgênero. Tese (Doutorado em Direitos Sociais) UFPR – Universidade Federal do Paraná. Curitiba: 2023, p. 32.
6 BULZICO, Bettina Augusta Amorim. O registro civil de pessoas naturais e a concretização dos direitos registrais a um nome e a autodeterminação da identidade de gênero de pessoas transgênero. Tese (Doutorado em Direitos Sociais) UFPR – Universidade Federal do Paraná. Curitiba: 2023, p. 33.
7 BULZICO, Bettina Augusta Amorim. Direito ambiental. Curitiba: InterSaberes, 2021, p.36.
8 BULZICO, Bettina Augusta Amorim. O direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado: origens, definições e reflexos na ordem constitucional brasileira. Dissertação (Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia). UniBrasil - Faculdades Integradas do Brasil Curitiba: 2009, p. 60 e 61.
9 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Agenda 2030 no poder judiciário: comitê interinstitucional. Brasília: Sistema de Comunicação Institucional, p. 07. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/01/cadernos-ods-agenda-2030-v3-03112021-1.pdf Acesso em: 07.jul.024.
10 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs Acesso em: 07.jul.2024.
11 INSTITUTO DE PESQUISA ECONOMICA APLICADA (IPEA). Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. 2018. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/ods/ Acesso em: 07.jul.2024.
12 CONSELHO NACIONAL DE JUSITÇA (CNJ). Semana Nacional do Registro – Registre-se! Disponível em: https://www.cnj.jus.br/corregedoriacnj/semana-nacional-de-registro-civil-registre-se/ Acesso em: 07.jul.2024.
13 BULZICO, Bettina Augusta Amorim. A sustentabilidade como ferramenta de proteção dos direitos de personalidade nos cartórios de registro civil de pessoas naturais. Revista Videre. Volume 14. Número 31. P. 25 a 43. Set-Dez 2022. Disponível em: https://ojs.ufgd.edu.br/videre/article/view/16321 Acesso em: 07.jul.2024.
14 BULZICO, Bettina Augusta Amorim. A sustentabilidade como ferramenta de proteção dos direitos de personalidade nos cartórios de registro civil de pessoas naturais. Revista Videre. Volume 14. Número 31. P. 25 a 43. Set-Dez 2022. Disponível em: https://ojs.ufgd.edu.br/videre/article/view/16321 Acesso em: 07.jul.2024.
15 BULZICO, Bettina Augusta Amorim. O registro civil de pessoas naturais e a concretização dos direitos registrais a um nome e a autodeterminação da identidade de gênero de pessoas transgênero. Tese (Doutorado em Direitos Sociais) UFPR – Universidade Federal do Paraná. Curitiba: 2023, p. 36.
16 GOMES, Fernanda Maria Alves. Proposta de alteração do Código Civil ameaça sobrevivência dos Ofícios da Cidadania. Consultor Jurídico – Opinião. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-abr-11/proposta-de-alteracao-do-codigo-civil-ameaca-sobrevivencia-dos-oficios-da-cidadania/ Acesso em: 07.jul.2024.