16/09/2020 15:25 - Fonte: Assessoria
Apenas 45 quilômetros
Do concurso
Em 2012 me inscrevi no edital para o 2º Concurso de Provas e Títulos para Outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado do Paraná.
A vontade de me inscrever em um concurso veio após ter conhecido o Direito Notarial e Registral na prática. Já era Bacharel em Direito quando iniciei como auxiliar, primeiramente no balcão de um Serviço Distrital de Curitiba, em seguida no setor de procurações, depois no setor de escrituras públicas e finalmente no registro civil daquela Serventia da capital do Estado do Paraná.
Importante dizer que a atividade notarial e registral não se aprende no banco acadêmico, e de auxiliar de cartório passei a Escrevente no ano de 2005. Alguns anos se passaram até que no ano de 2011 fui nomeada Escrevente Substituta do Interventor Judicial nomeado para atuar em um tabelionato de Notas em Curitiba e posteriormente como Escrevente Substituta de um Registro de Imóveis na cidade de Ponta Grossa-PR.
Após as fases do concurso, contendo prova objetiva, prova escrita, prova oral, prova de títulos e avaliação psicológica, além de muito sofrimento e angústias, finalmente chegou a aprovação e o tão sonhado dia da escolha da serventia extrajudicial em 16 dezembro de 2016.
Passaram-se 5 anos desde o primeiro edital e já eram quase 23 horas no dia 16 de dezembro de 2016, sendo que a minha escolha foi o Serviço Distrital de Catanduvas do Sul, localizado na cidade de Contenda-PR, Comarca da Lapa-PR. Então, me veio à mente: “mãos à obra!”
O transporte do Acervo
O acervo do Cartório Distrital de Catanduvas do Sul estava inicialmente junto ao Cartório Distrital de Contenda, mas em 17/12/2016, quando houve a assunção de novo titular deste Serviço Distrital, o acervo de Catanduvas do Sul foi para a guarda da sede da Comarca, na cidade da Lapa-PR. Ou seja, quando assumi a Serventia Distrital de Catanduvas do Sul, em fevereiro de 2017, o este acervo estava no fórum da Lapa-PR, acondicionado todo numa sala, em prateleiras à minha disposição para que eu pudesse levar, por conta própria, todos os livros, caixas, pastas, e demais documentos do acervo para a localidade de Catanduvas do Sul, localizado no município de Contenda-PR.
Desta sala, no Fórum da Lapa-PR, tive que transportar todo o acervo até o Município de Contenda e daí, até o Distrito de Catanduvas do Sul. A distância entre a cidade da Lapa ao Distrito de Catanduvas do Sul é de 45Km, este trajeto passa pela BR-476, que é asfaltada e possui pedágio até chegar em Contenda-PR. Após a entrada de Contenda deve-se entrar na PR-511 (trecho não pavimentado de 12 km, chão mesmo!) até o Distrito de Catanduvas do Sul.
A localidade
Catanduvas do Sul é um lindo lugar, mas a infraestrutura é precária. Distrito totalmente rural, possui uma igreja, uma praça, uma escola e quatro pequenos comércios. Existe apenas uma rua com pavimentação de cimento e o restante sem pavimentação. Neste local, e com todo o acervo trazido da Lapa, tentei encontrar um local para instalar a Serventia e fazer todo o investimento para poder atender com urbanidade e presteza os usuários do serviço. Ora, que dificuldade!
Em mim, havia uma turbulência de sentimentos, um misto de esperança, alegria e ansiedade no desafio de atingir o objetivo de continuar com a atividade que tanto gosto como Agente Delegada do Serviço Distrital de Catanduvas do Sul.
Mas, a alegria começou a se transformar em angústia. Primeiramente porque não havia local onde instalar de forma adequada o cartório. Não há imóveis para locação, e o que eventualmente aparece são chácaras ou fazendas, o que se tornaria fora de mão e especialmente caro. Assim também a mesma dificuldade de encontrar um local para moradia própria.
O desafio entre o carro e a estrada
Por ser um Distrito rural, o acesso se dá por estrada de chão, muito esburacada, entre lama e pedras. Num primeiro momento minha prioridade era trocar de veículo, visto que a primeira vez que fui a Catanduvas num carro que eu tinha, quase não consegui voltar por causa da lama e atoleiros que peguei no caminho. Vi a necessidade de estar com um veículo adequado, vendi meu veículo e adquiri, então, um veículo 4x4 usado para poder aceder ao Distrito, diminuindo o risco de atolar.
O Distrito não possui sistema de transporte público. É essencialmente rural. Não tem banco ou caixa eletrônico, muito menos uma lotérica. O poder público lá, se limita a um posto de saúde e a uma construção da sub-prefeitura de Catanduvas do Sul.
O desafio de encontrar uma morada
No início optei por viajar todos os dias de Curitiba a Catanduvas do Sul, pois não encontrava local para morar. Acordava todos os dias às 5 horas da manhã e às 6 horas já estava na estrada a caminho de Catanduvas do Sul. A distância não era muita. Eu estava a 45 km da localidade, a mesma distância da Lapa à Localidade, sem contar que não há pedágio entre Curitiba e Catanduvas do Sul. Após alguns quilômetros de asfalto, após a cidade de Araucária, o acesso para Catanduvas do Sul, mais próximo, tinha uns 12 quilômetros de terra. Quando havia sol, a poeira era muito grande e as pedras se soltavam da estrada facilmente, o que certa vez causou uma rachadura no parabrisa do meu carro, que troquei somente muitos meses depois, por falta de recursos financeiros.
Quando chovia, a estrada ficava especialmente perigosa, escorregadia, com lama e barro por todo o trecho da estrada. E, quando chovia muito, as águas passavam pela estrada de forma atravessada, como rios, e quando era bastante chuva tinha até correnteza! E por duas vezes naquele verão de 2017, chegou a chover tanto, que o rio, em lugar de estar à margem da estrada, como normalmente ocorre, cruzava a estrada e tinha tanta água atravessando que não era possível passar! E assim, a localidade de Catanduvas do Sul ficava ilhada, sem qualquer acesso, até que cessava a chuva e as águas começavam a baixar, e o rio voltava ao seu leito normal.
Então, um belo dia, recebi um mandado através de oficial de justiça, de que seria obrigada a morar na localidade, logo, como na Lapa ficaria mais caro devido ao pedágio, aluguei uma peça dentro de uma casa de uma comerciante da localidade de Catanduvas do Sul e ali ficava durante a semana. Nos finais de semana voltava para Curitiba e quando precisava fazer alguma compra na Capital ficava por lá, sendo que na manhã seguinte cedinho voltava para a estrada, para chegar bem cedo a Catanduvas do Sul.
O desafio de encontrar um local adequado para a instalação
Com muito esforço fiz um convênio, legalizado e autorizado pela Câmara Municipal de Contenda, para utilizar uma sala dentro de uma edificação da Sub-Prefeitura de Catanduvas do Sul-PR, única construção recente e mais próxima das exigências para a instalação de um cartório. Neste período fui hostilizada por políticos locais e vizinhos que queriam saber “qual a vantagem”, ou “para quem” eu estava “pagando” para ocupar a sala.
Esta sala possuía aproximadamente 12m², e com muito amor e criatividade ali ficou instalada a Serventia Distrital de Catanduvas do Sul, com armários/gaveteiro, mesa e duas cadeiras novas que eu consegui emprestadas.
A saga para conseguir um telefone
Uma das maiores dificuldades, por incrível que pareça, foi pedir uma linha telefônica fixa, pois a telefonia móvel não existe na localidade, assim, o telefone fixo é a única alternativa para comunicação telefônica no Distrito. Como a empresa Oi não tinha linhas disponíveis para a instalação, tentei a linha VOIP, mas a única internet disponível era a internet via antena de rádio, então a ligação via VOIP não era boa e com o agravante de que quando chovia muito, não havia sinal de internet e consequentemente não havia telefonia, ainda que deficiente.
Então, após muitas ligações e reclamações junto à Anatel e à operadora Oi, a linha telefônica fixa foi instalada após longos seis meses depois do primeiro pedido junto à operadora.
Cartório informatizado
Junto com a instalação no imóvel cedido, adquiri dois computadores e uma impressora de etiquetas, uma impressora comum e uma copiadora alugada, além da aquisição de um sistema operacional que foi pioneiro no Cartório de Catanduvas do Sul, pois o acervo não continha nada informatizado, e o sistema operacional para cartórios serve para atender com qualidade e segurança os usuários.
Como o Cartório de Catanduvas do Sul até então, não tinha absolutamente nada informatizado, no período que fiquei a frente do Cartório arrumei todo o acervo devidamente acondicionado, fiz todo o índice informatizado e iniciei os trabalhos com sistema informatizado adquirido, alimentando todo o Registro Civil de Nascimento com CPF, cartões de assinaturas, Escrituras Públicas digitalizadas e tudo o que podia fazer de melhor para atender ao público do Cartório.
As dificuldades de ter um cartório rural é que qualquer coisa que você precise é necessário pegar o carro e ir até a cidade mais próxima para comprar, por exemplo: papel A4 e qualquer tipo de suprimento de material de escritório tal como caneta, carimbo, tinta, clipe, grampo, etc. Até mesmo para almoçar não há local, pois restaurante não há por lá, e na localidade há somente botecos.
Logo, consegui adquirir uma geladeira usada e um micro-ondas usado que trouxe para amenizar as idas à cidade de Contenda e consequentemente minhas ausências do cartório, pois assim conseguia fazer minha comida ou levar uma marmita de casa.
Contratei uma moça para me auxiliar no cartório, a qual morava na localidade rural do Pocinho, próximo a Catanduvas do Sul, que até então só conhecia o serviço da roça e tinha acabado o ensino médio na escola do Distrito de Catanduvas, a quem fui ensinando o serviço rotineiro do Cartório.
Em algumas oportunidades de sair da Serventia, fazia muitas visitas aos locais para me apresentar e informar das novas instalações e da prestação de serviço de Notas e Registro Civil.
Atividades sociais
Também atuei em diversas oportunidades, como quando organizei um projeto social junto com a comunidade local onde pudemos trazer pessoas para executar serviços gratuitos como corte de cabelos, distribuição de doces, algodão doce, pipoca, música, brincadeiras, pula-pula, piscina com bolinhas para crianças, orientações grátis profissionais da saúde (dentistas, médicos, enfermeiros) que doaram o seu sábado para dar orientação básica de saúde à comunidade, assim como foram ofertadas palestras sobre relacionamento entre pais e filhos e relacionamento entre casais (executados por voluntários da Universidade da Família). Nesta oportunidade fizemos um bazar beneficente para ajudar um garoto portador de ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica), que precisava de um gerador de energia, visto que com as frequentes quedas de energia da localidade de Catanduvas do Sul, o garoto ficava sem o seu respirador, fazendo com que os pais tivessem que sair correndo, muitas vezes no meio da madrugada, até o Hospital, que fica em Contenda, para que o mesmo não morresse por falta de oxigênio.
Em meados de 2017, minha vó faleceu e eu ainda estava trabalhando no Cartório nesta época sem funcionária para me auxiliar. Herdei de minha avó um acervo contendo vários livros de literatura, então, tive a ideia de instalar dentro do imóvel da Prefeitura, uma biblioteca pública, em que o usuário poderia pegar o livro para ler, sem qualquer cadastro ou ficha, e devolver ou ainda trazer algum livro seu para fazer parte da biblioteca.
Viagens semanais
Uma vez por semana fazia a viagem até a Lapa-PR para alguns tramites locais, especialmente para a apresentação de pedidos de Retificação de Nome, algo muito comum pois havia vários erros de grafia nos assentos de registros antigos.
Cartórios defasados
Dediquei-me inteiramente ao Cartório neste período. Mas, as despesas mensais eram na conta de R$5.000,00 (cinco mil reais), e por vários meses o arrecadado não chegava a esse valor. O fundo ao Registrador Civil pagava o equivalente a um salário mínimo, isso não era suficiente para pagar a única funcionária auxiliar. É possível que com o passar do tempo o cartório fosse chegar a um valor que pudesse dar uma remuneração razoável à titular, mas minha saúde e minhas economias próprias para manter o cartório já estavam se esgotando.
Sei que essa história não é privilégio meu. Tenho conhecimento de colegas que ainda estão na titularidade de cartórios defasados e que passam também por muitas dificuldades como as que passei e com certeza, por muitas outras, pois ser titular de um cartório rural, como era o meu caso, envolve toda a sua família, amigos, pessoas a seu redor, mas a falta de estrutura e renda para suprir as necessidades mais básicas, desanima.
Esse relato não é uma reclamação, é apenas um pequeno trecho da minha saga à frente do Cartório de Catanduvas do Sul, que após um ano e dois meses da minha posse, eu pedi a renúncia à delegação.
Ao final deste um ano e pouco trabalhado, deixei uma biblioteca e alguns amigos em Catanduvas do Sul, e para mim sobrou a experiência sacrificante de instalar uma Serventia que está a 45 minutos de Curitiba-PR.
GABRIELA CHRISTINA SCHWEITZER DE MIRANDA
27/01/2020.